Quando a médica entrou no avião, percebeu que aquela não seria uma viagem tranquila.
Ele estava praticamente tomado por pais e filhos que voltavam de um torneio de beisebol para crianças de sete anos.
Os meninos estavam eufóricos, gritando, gesticulando, porque tinham conquistado o segundo lugar.
Rachel imaginou como seriam incômodas as horas de voo, em meio a tanto barulho. Ler ou escrever, tentar se concentrar era mesmo algo impensável.
Ao seu lado se sentou uma senhora, com um garotinho de uns dois anos, que estava profundamente irritado. E fazia questão que todos soubessem do seu protesto, através dos seus gritos.
A médica tentou trocar de lugar, mas o avião estava lotado. Sem chance.
Teria que se conformar com a algazarra e aguentar aquele pequeno, ao seu lado.
Afinal, depois de algum tempo, ele foi se sentar com outro menino, participando das brincadeiras barulhentas.
Então, Rachel resolveu entabular conversa com a senhora, indagando a respeito da liga de beisebol.
Ela lhe falou das inúmeras horas em que trabalhava encorajando as crianças, o esforço para conseguir fundos para as viagens para as competições e compra de material.
Estava ali com dois dos seus quatro filhos, um deles participando dos jogos. Dizia que, no seu bairro, muitos meninos tinham sido mortos ou presos, vítimas das drogas e da violência.
Acreditava que mantê-los ligados ao beisebol era o seguro de vida que ela queria para os seus e os filhos alheios. Afirmava que não bastava ter filhos, era preciso zelar por eles.
Um sentimento de respeito começou a invadir a médica.
Contudo, chegou a sua vez de dizer o que fazia da própria vida.
Quando informou que era oncologista, trabalhando com pacientes terminais de câncer, o rosto daquela mãe foi tomado por uma nuvem de tristeza.
Contou que sua vizinha, sem marido e com quatro filhos pequenos, tinha sido diagnosticada com câncer, há seis meses.
Narrou como o tratamento com a quimioterapia a deixava debilitada, ao ponto de não poder sair da cama, em muitos dias.
E foi dando detalhes e mais detalhes de como a sua vizinha passava mal, com enjoos, não conseguindo se alimentar.
Discorreu a respeito dos medos e dos pesadelos que atormentavam aquele coração.
Rachel ficou curiosa. Como ela sabia de tantos pormenores da vida da sua vizinha? Eram detalhes, alguns até muito íntimos.
A resposta que ouviu a deixou perplexa. Quando a tragédia visitou a casa ao lado da sua, aquela mulher simplesmente levou a vizinha e seus quatro filhos para o seu próprio lar.
Estavam lá há cinco meses. Entretanto, e o que mais impressionou a médica foi olhar para aquele rosto, que não traduzia martírio, nem orgulho.
Falava de forma simples, como se o que estivesse fazendo fosse a coisa mais natural do mundo: assumir a vida de cinco pessoas, além dos seus tantos compromissos como mãe.
Seu rosto transparecia serenidade.
Então Rachel tomou de um pequeno caderno e anotou, entre a emoção e o respeito: O ato de enxergar pode transformar a pessoa que vê. Também a nossa visão para o resto da vida.
Redação do Momento Espírita, com base no
cap. Enxergando a semente de Buda, do livro
As bênçãos do meu avô, de Rachel Naomi Remen,
ed. Sextante.
Em 30.8.2019.
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