Texto
O OLHAR QUE ENSINA
Teve uma época da minha vida em que eu ia todos os dias no Centro Cultural Vergueiro. Passava ali muitas horas desfrutando das oficinas de teatro, assistindo shows e lendo muito. Para uma pessoa como eu que havia chegado do interior, a possibilidade de um local desses era mágico.
Você via desde uma carta de Anita Malfatti a livros traduzidos de outros países. Era um espaço surreal para mim. Ficava às vezes oito horas ali. Que passavam rapidamente e enriqueciam muito o meu espírito. Li todo tipo de história. Cada uma trazia mais emoção que a outra.
Mas um dia eu vinha caminhando pela Av. Liberdade para ir ao Centro Cultural e vi uma cena que me chamou muita atenção. Na calçada havia uma mulher negra, aparentando uns 23 anos, careca, muito magra. Ela estava agachada e embrulhada em um cobertor.
O dia estava muito quente. O sol batia de frente com aquela moça. As pessoas passavam pra lá e pra cá e era como se ela não existisse ali. Chegando mais perto vi que seu olhar era indiferente, fixo no nada. Aquele ser humano sentia uma dor que dilacerava as suas entranhas. Parei ali. Não conseguia caminhar. Pensei em como eu poderia ajudar.
Eu era muito jovem e a primeira coisa que me ocorreu que ela poderia estar com fome. Então me aproximei e me ofereci para pagar um lanche, um almoço. E depois de um breve silêncio e sem se mexer. Ela me disse: “não”.
Foi o “não” mais sonoro que já ouvi em toda minha vida. Incomodada com aquela situação eu insisti. Posso te ajudar de alguma forma? E ela olhou no fundo dos meus olhos e disse: Não!
Eu entendi! Ela não estava pedindo esmolas. Não queria alimento naquele instante. Ela queria ficar só com ela mesma e daquele jeito.
Não sei e nunca vou saber o que aconteceu com ela. Mas me tocou profundamente. Continuei caminhando e cheguei ao meu destino. Eu queria ler, aprender, viajar naquelas histórias fantásticas. Sentei-me lá no fundo e fiquei quieta por algum tempo. Eu me dei conta que tinha vivido uma história naquele dia ensolarado de novembro. Uma história que levaria para o resto da minha vida. O tal do aprendizado.
A experiência que te ensina alguma coisa. Não durou mais que dez minutos o meu contato com alguém que eu achei que resolveria o seu problema ou o meu problema pagando um lanche e a deixando num lugar mais confortável. Me senti impotente. Transcendeu a minha realidade. Ela tocou a minha alma de algum modo. Eu percebi a sua dor ali tão visível e tão latente e não pude fazer nada. Mas aprendi que todos nós temos nossos limites. Temos o nosso espaço.
Passados muitos anos me vi sentada em um apartamento sentindo uma ruptura brutal com meu próprio mundo. Eu me desfiz de tudo que tinha. E não queria ver ninguém conhecido, ninguém familiar. Eu queria ficar só! Renascia ali uma nova pessoa. Que colocava um ponto final em muita coisa.
Então ali, vinte e cinco anos mais tarde eu tive a noção que às vezes ficar só, seja lá onde e como for é necessário ou é a única saída para sobrevivermos com lucidez. Me senti feito aquela moça agachada e embrulhada em um cobertor num dia extremamente quente, quieta no mundo dela. Eu também não tinha fome. Tinha sede de me encontrar pela primeira vez na minha vida.
PATRÍCIA LOPES DE OLIVEIRA
Formada em Letras e Direito. Pesquisadora de Projetos Humanitários e Culturais.
Escreve periodicamente em nosso Blog.
11:56:18
Uma resposta
Oi, respira fundo e segue. .” Caminhando e cantando e seguindo a canção” não pare a música da vida ela é linda em todas as fases, o que é bom ruim serve como aprendizado